A verdadeira origem literária da frase de Alberto Fernández sobre mexicanos e brasileiros

Fala desastrosa deu munição aos opositores aqui no Brasil, o que deu início a uma troca de estupidez

Quarta-Feira, 9 de junho. Alberto Fernández falava com empresários espanhóis e argentinos e recebia a Pedro Sánchez, o primeiro-ministro da Espanha, na Casa Rosada. Sem corar, e dizendo citar o poeta mexicano Octavio Paz, destilou declarações repletas de racismo que ecoam da história colonial argentina.

“Os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros saíram da selva, mas nós os argentinos, chegamos de barcos. E eram barcos que vieram de lá, da Europa”

A repercussão foi imediata. Enquanto jornalistas e diplomatas criticaram duramente o presidente argentino, uma turba ensandecida do segundo e terceiro escalão do governo brasileiro partiu para a troça equivocada. Houve até quem confundisse as Malvinas com as Maldivas ( vá lá, até o Obama já cometeu essa gafe, apenas zoamos)

Mas, trocas de estupidez à parte, não me espantou que pouco se tenha aproveitado a ocasião para falar de literatura, mesmo entre os literatos. Me pergunto se é porque Octavio Paz é ultimamente pouco lido por aqui e por lá. Vai se saber. Pois bem, este é um blog literário. Vamos dar uns dois cetavos sobre este ponto e os demais que o circundam.

Primeira camada de uma citação errada

O que você vai encontrar em todos os portais é a averiguação de que Octavio Paz jamais escreveu algo assim, apenas tem relação com uma citação levemente diferente, em um contexto completamente diverso.

Embora Fernández tenha afirmado que estava citando um trecho de uma obra do poeta mexicano, vencedor de um Prêmio Nobel de Literatura, na verdade estava mencionando parte da música “Llegamos de Los Barcos“, lançada em 1982 pelo músico argentino Litto Nebbia, de quem é abertamente fã.

A letra da música diz, em espanhol: “Los brasileros salen de la selva / Los mejicanos vienen de los indios / Pero nosotros, los argentinos / Llegamos de los barcos”.

Segundo encontrei em matéria da Folha, a primeira banda de Nebbia, Los Gatos, ajudou a popularizar os primeiros lugares em Buenos Aires em que se tocava rock, nos anos 1960 e 1970 e o contor é conhecido por trazer elementos do folclore local ao rock progressivo e ao jazz. Por isso bastante integrado e reconhecido pela cultura local.

Foi militante contrário à última ditadura militar no país, o que talvez explique sua relação com Fernández. “Sou fanático pela obra dele”, disse o presidente argentino em uma entrevista. Os dois já tocaram guitarra juntos informalmente, e o peronista convidou o músico para se apresentar em sua cerimônia de posse.

Vale dizer aqui, que a frase racista é, na canção, precedida por versos que as dão um contexto. “Quería que fuera una zamba / Que un poco explicara / Desde dónde vinimos / Y así seria más simple / Saber dónde vamos“. O contexto que falta na fala de Fernádez não limpa a barra da canção, que claramente não encontra lugar nos dias de hoje, mas aponta a direção de nos levar de volta à literatura.

Segunda camada de uma citação errada

A verdadeira frase literária é um velho clichê que caiu em desuso por ignorar a história dos povos indígenas argentinos e por invisibilizar esses povos e seus descendentes.

Existem dela, pelo menos dois registros bibliográficos conhecidos. O primeiro não tem a ver com Paz, mas com outro escritor mexicano; Carlos Fuentes . 

Durante anos, Fuentes aludiu em entrevistas à ideia dos argentinos como “descendentes de navios”, mas foi em 2000, no prefácio de “Los cinco soles de México“, uma seleção de textos de sua extensa obra literária e ensaística, que a frase foi publicada:

Recentemente, um jornalista perguntou a um grupo de mexicanos: “Quando começou o México?” Um tanto perplexo, consultei minha resposta com um amigo argentino, já que a Argentina é, na América Latina, o pólo oposto do México, tanto geográfica quanto culturalmente. 

Meu amigo, o romancista Martín Caparrós , me respondeu pela primeira vez com a famosa piada: “Os mexicanos descendem dos astecas. Nós, argentinos, viemos dos barcos.” E é verdade: o caráter migratório recente da Argentina contrasta com o antigo perfil do México. Mas Caparrós me disse outra coisa: “A verdadeira diferença é que a Argentina tem um começo, mas o México tem uma origem.”

Fonte: La Nacion

Vemos que Fuentes cita Caparrós, que por sua vez responde com uma citação de um ditado popular argentino. Fica claro aqui que, diferente da fala ignorante do presidente atual, os dois autores questionam a noção de origem do povo argentino e sua indefinição pós colonização. “… a Argentina tem um começo, mas o México tem uma origem.

Seja verdade isso ou não, é uma fala que engradece a tradição e a cultura mexicana enquanto convida a Argentina a pensar sobre o que significa sua cultura. Particularmente, como Brasileiro e como leitor, me identifico bastante. Esse é também o cerne da tradição modernista brasileira, encontar alguma origem para o que significa pertencer a esta nação.

E onde entra Octavio Paz?

Quem pela primeira vez coloca o grande poeta da Cidade do México nessa história foi Marcos Aguinis, em seu livro “O atroz encanto de ser argentino, publicado pela primeira vez em 2001. Na página 53 de sua primeira edição, o autor faz referência a isso em uma citação “como uma piada usada por Octavio Paz para descrever o impacto da migração europeia na sociedade argentina.

“Há vários países com perfil de imigração, mas em nenhum outro lugar a onda teve um impacto tão intenso como no nosso. Devemos lembrar e valorizar isso. O equilíbrio com a população original sofreu uma reviravolta sem precedentes. Os Estados Unidos parecem ser o lugar que mais recebe imigrantes no planeta, mas lá, em 1914, havia um estrangeiro e meio para cada dez habitantes, enquanto na Argentina já havia três para cada dez: o dobro! Então é só uma piada de Octavio Paz, que dizia ‘mexicanos descendentes de astecas, peruanos dos incas e argentinos … dos barcos’”.

Aqui aparecem os peruanos, mas não os brasileiros. Aqui, vê-se de novo que o tema é a imigração, não uma suposta superioridade que essa imigração teria causado no povo argentino. Mas ela está lá, de modo que o dito popular pode ter vários sentidos. A indefinição do povo expressa na literatura e na canção de Nebbia não existem fora do contexto da sociedade e da história argentina. Nenhuma obra de arte existe fora desses contextos, então vou me atrever a sair um pouco (mas só um pouco) do que cabe a este post explorar. O resto, fica para outros estudos.

A camada mais profunda de uma citação equivocada

Se há uma coisa que aprendi nesses dez anos publicando na internet é a importância da escolha sábia das palavras. Nem sempre é fácil, mas sempre é desejável. Escrevo agora mesmo com o receio de abordar temas que não domino. Já li e admiro muito a obra de Paz, gosto e consumo muito da cultura argentina e tenho interesse por ciências humanas. Nada disso me impede de falar bobagem.

Por isso, a fala desastrosa de Fernández e suas repercussões igualmente estupidas aqui no Brasil me incomodam muito. Gente falando do que não entende sempre gera mais gente falando do que não entende. Consultar as fontes se mostra uma forma de romper esse ciclo.

No livro “Indígenas e criollos”, o pesquisador brasileiro Gabriel Passetti descreve como os descendentes de espanhóis promoveram uma matança indígena no sul da Argentina para conseguir estabelecer seu domínio do território e criar o mito de uma nação europeizada.

A rendição do último cacique livre da região, Saygueque, se deu em 1885, após uma política de Estado de guerra contra o que chamavam de “índios bárbaros” e que foi a causa do genocídio de populações indígenas inteiras. Em entrevista, o autor declarou:

“A Argentina construiu sua identidade como um país de brancos descendentes de europeus, um enclave da civilização europeia na América do Sul, o indígena não cabe nesse discurso. Há ainda muitos índios na Argentina, em Misiones e no norte, mas eles não entram nessa imagem nacional e são em geral muito mal vistos. Portanto, nem essa relação idealizada com o índio eles têm.” 

No Twitter, Matias Pinto, do podcast Xadrez Verbal, fez uma sequência muito interessante sobe suas perspectivas sobre isso. Recorto aqui apenas uma parte, mas recomendo que a leiam inteira.

De novo, como brasileiro me identifico. Não como se pudéssemos apontar dedos e dizer que fizemos diferente. Embora as marcas do racismo estrutural na Argentina sejam marcas visíveis na sociedade portenha ( recomendo a leitura desse artigo do El País), no Brasil ela não é menor ou menos evidente, apenas amis lavada para debaixo do tapete.

O genocídio negro no Brasil é uma realidade constante e o desejo de eliminação das comunidades indígenas no país é matéria de jornal todos os dias.

Como disse no princípio, o racismo estrutural e o viralatismo de Fernandéz encontrou eco no submundo político e no reacionarismo brasileiro, que para se erguer valeu-se das mesmas retóricas. Mostrando que os problemas que os afligem lá também estão expressos aqui, através da incapacidade de ler o mundo e fazer a pergunta crucial que motivou a frase infeliz num principio: Quem somos nós?

A verdade é que tememos expressar a resposta que sabemos.